quinta-feira, 6 de abril de 2023

Lampejos de ternura – parte 1

 

Em meu último texto, escrevi sobre essa ótica que chamei de viver ao vivo.

E em minha mente acostumada a divagar sobre a construção de minhas verdades refleti sobre os momentos importantes dessa transição entre refletir e viver. Foram muitos momentos; estou certo de que a maioria deles se perderam em minha lembrança ou escaparam a minha percepção.

Estar atento ao momento é fundamental, mas igualmente importante é entender que nunca conseguiremos captar tudo de belo que nos é exposto. É normal estarmos dispersos em alguns momentos. Talvez nem os monges, pajés e outras almas que mergulham fundo no autoconhecimento conseguem captar tudo que lhes é ofertado.

Equilibrar a atenção plena com serenidade e compaixão a si mesmo é tão fundamental quanto o exercício da atenção em si. Pois, se um aprendizado não foi percebido ou aproveitado, o universo vai te enviar outro, pode ser um sussurro ou um grito, tenha certeza de uma coisa... Sempre teremos vasta oferta de provocações ao nosso desenvolvimento.

É transgressora a mudança de observar as belezas ao tempo que elas ocorrem, mas não tenho a pretensão de observar 100% delas.

Na busca em minha memória das vivências que ajudaram a desenvolver e solidificar essa percepção cheguei a alguns momentos de ternura, em meio a dificuldades, que me arrebataram a uma beleza simples da natureza, inclusive da minha natureza.

 

Pois bem, por hora consegui lembrar de dois e os relatarei aqui em duas postagens, o que segue é o primeiro...

 

Coincidência ou não, ambos foram provocados por uma situação de crise. Não acho que todas as provocações utilizam a crise para se manifestarem em nós, mas é um ponto delicado. Sei que as dificuldades têm essa capacidade, mas suponho que há outros dispositivos que não necessariamente seja a dor e sofrimento. Afeto por exemplo, só pra começar... Mas essa reflexão ficará pra depois.

 

Tive uma fratura em meu pé após um jogo de basquete informal durante um evento de Dia dos Pais na escola de meus filhos. Não foi necessário cirurgia, mas uma imobilização que me deixou 6 meses sem andar. Dei entrada no INSS, tinha toda compreensão de meu empregador e passei um tempo ‘de molho’.

 

Ficar totalmente dependente por um período tão grande não parecia ser fácil pra mim, mas sinceramente não lembro de ter tido grandes dificuldades para lidar. Tive a sorte e privilégio de ter uma parceira que compensou minhas limitações físicas e ainda ajudou com emocional.

 

Deve ter tido alguns momentos de desequilíbrio, ansiedade e frustração, porém não lembro deles. Lembro de estar perto de meus filhos e de acompanhar a rotina da casa. Até então não tinha trabalhado home office, acompanhar a rotina da casa foi elucidador.

Não podia buscar meu filho na escola, mas após o almoço cochilávamos juntos embalados em músicas de ninar. Coloquei as séries e leituras em dia e percorri esse processo. Cadeiras de rodas, depois muletas e muito afeto de todos ao meu redor com o processo pelo qual estava passando.

 

Certamente esse período melhorou minha relação com meus filhos e me alertou da sobrecarga que minha parceira vivia nessa rotina, além da dádiva de tê-la cuidando de perto de nossos filhos.

 

Quando estava em fase final de recuperação, ainda sem pisar no chão encontramos uma amiga de infância, fisioterapeuta das boas, na piscina do condomínio na praia e ela, após saber detalhadamente da fratura e recuperação fez uns exercícios na piscina e nos alertou que a fisioterapia do plano de saúde posterga a recuperação para te manter lá, aumentar seus lucros. Absurdo! Ela me pôs pra andar nesse mesmo dia. Pela primeira vez, após 6 meses, andei. Era normal sentir dor ao andar, mas andei, sorri, quase chorei, mas guardei o choro.

 

No início da noite, por volta das 18:30 a lua sairia no horizonte, majestosa. Todos fomos ver o espetáculo. Eu ainda de muleta, pela dor que sentia, mas radiante com a evolução da recuperação.

 

Não tão radiante como a lua ao aparecer na linha do horizonte à beira mar. Na lua cheia, o mar fica em festa, maré cheia e agitada, tudo escuro até a escuridão dar lugar ao amarelo da lua refletindo no mar. Já tinha visto a lua nascer naquele mesmo lugar, mas nunca daquele jeito. Aliás, há milhões de anos acontece aquele espetáculo, entre ciclos e processos, repetidamente acontece. Quem mudou não foi a lua, o mar. Quem mudou fui eu!

 

A luz da lua clareou o mar criando uma linha de luz na superfície da maré agitada que me levava longe em pensamentos, me levava ao infinito do horizonte, aonde nunca chegaremos, na mesma medida que nos aproximamos nos distanciamos, em uma geometria perfeita.

 

Ali inaugurava um novo momento de percepção e sentir, e queria me envolver nessa nova proposta. Tirei a roupa, fiquei só de cueca, e fui, ainda de muleta pra não machucar meu pé, até a beira. Ao ter as águas ao nível meu joelho, ou um pouco abaixo deles, passei a muleta para minha parceira, companheira de vida. Sentei a bunda na areia e com as mãos me conduzi, me arrastando ao mar.

 

Fiquei boiando, deixando me levar pelo sobe e desce das ondas. Não lembro exatamente o que pensava no momento, eram mais sentimentos que pensamentos. Lembro claramente de sentir o sagrado, o divino. Lembro de me sentir parte, de me sentir seguro com a vulnerabilidade síncrona da natureza, naquele sobe e desce das ondas.

 

Até que as ondas, em sua formação ficavam frente a lua na perspectiva de meu olhar, amarela. Isso é um quadro mental inesquecível, as ondas entre meus olhos e a lua, intermitentemente. Das poucas coisas que lembro de pensar foi que a onda estava ali, em minha frente, se eu não observasse levava um ‘caldo’ mas tinha total influência da lua. Pensei que tudo estava interligado, e me senti parte daquilo.

 

Dessa vez não guardei o choro, chorei com toda plenitude, de emoção de felicidade e de fé.

Não sei quanto tempo essa experiencia durou, mas ficaria muito mais ali, contudo em mais um  lapso de realidade pensei que meus familiares poderiam estar preocupados comigo na areia.

 

Daí deixei as ondas me levarem até a beira, sentei-me de bunda na areia e fiz com as mãos o caminho de volta de costas até a beira...

Ao chegar na beira, estava ela com minhas muletas, toalha, chorando de emoção por mim.

Que conexão!

 

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